domingo, 15 de junho de 2008

O dia de Marcela

A coisa mais triste na vida é concluir que amor é coisa de quem tem tempo.
Acordar e lavar o rosto - a água gelada nos traz novamente para o chão quando os resquícios de sonho parecem em se misturar com as cores da manhã -, um café preto sem açúcar, uma olhada rápida no e medrosa no espelho, bate a porta. Sai à rua e começa o dia.

Fazia frio. Marcela dirigia rumo ao seu escritório na Vila Madalena e pensava as coisas que pensamos quando saímos às ruas de São Paulo pela manhã às oito horas da madrugada, numa segunda-feira e a Paulista e seus zilhões de veículos poluidores - humanos ou não - socializam e brindam à desgraceira geral que a modernidade trouxe à terra da garoa.

Ela sentia vontade de tomar uísque puro e sem gelo nessas ocasiões (desgraceiras gerais, oitos-horas-da-madrugada etc.), aquelas malditas vontades não consolidadas, sabe? Pensava-se ousada e bonita tomando uísque puro pela manhã... O trânsito andou dois metros, segue o jogo.


São Paulo é o lugar mais fantástico e tenebroso que já conhecera. Milhões de pessoas simultaneamente se preocupam em fazer dinheiro e em andar o mais rápido possível - isso traz sérias consequências à cadência da cidade, mas isso é assunto pra outra prosa.

Ela chega, enfim, ao escritório. Marcela era advogada bem sucedida.

Entre trânsito e trabalho, gastava todas as horas úteis dos seus dias e o seu casamento já tornara-se mera formalidade. Possuía opiniões particulares sobre a função do amor na vida dos seres humanos. Experimentara mais sofrimentos com as pessoas que amara do que com as que odiara e julgava custoso delimitar certamente a linha que separa o amor dos demais sentimentos de conveniência. Na sua opinião, o casamento era conveniente e era menos trabalhoso contentar-se com as pragmáticas matrimoniais.

Voltemos ao grande dia de Marcela.

Estava perdida nos papéis e mergulhada nas mesmas leis gastas de sempre (a rotina de um advogado é coisa que inspira tristeza), quando adentrou o seu escritório o advogado de uma das partes envolvidas num caso no qual ela trabalhava há bastante tempo.

- Doutora Marcela?
- Sim?
- Sou Doutor Gabriel, advogado do João de Assis. Tem um minuto?
- Sim. Acho que sim.

Gabriel era alto e tinha os olhos medrosos, como as mãos, os pés, como tudo. Tinha a voz calma e pronunciava pausadamente as frases, demostrando segurança e firmeza nos argumentos. Os argumentos eram medrosos também.
Marcela o ouvia falar e prestava atenção nas sensíveis formas da sua boca e nos movimentos nervosos de suas mãos. Esteve fascinada durante esse espaço pequeníssimo de tempo que findou-se com um convite singelo para um café depois do expediente.

Conversaram calmamente durante o café e se olharam com quele mesmo fascínio interminável. Nestes minutos, Marcela sentiu o inédito: o frio na barriga de um romance apequenado pela simplicidade do café, mas capaz de fazê-la pensar sobre seus caminhos, suas escolhas e, especialmente, sobre seus verdadeiros desejos. Na hora de ir embora, Gabriel passou as mãos pelos cabelos de Marcela e disse que gostaria de vê-la no dia seguinte pela manhã.

Chegou em casa e tomou um banho demorado, como quem revive cada segundo do dia com todos os sentimentos. Deitou-se nua, insinuou-se para seu marido, e, mecanicamente, fez um sexo demorado, com a força calculada, os sussurros calculados e com os gestos medrosos que aprendera num café supostamente despretensioso.

Quando seu companheiro acordou, Marcela já havia saído. Ele olhou no calendário e repensou o dia anterior.
Guardou aquela data, aqueles horários e os gritos simulados da mulher que jamais tornaria a ver.