quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Lígia

Lígia sempre fora daquele mesmo jeito. Usava roupas estranhas, não cuidava do cabelo e não se maquiava.
E naquele dia, a vizinha do 560 advertiu: - Lígia, Lígia, você não arruma marido com esses sapatos, minha filha...

Ela saiu de casa, trancou a porta com duas voltas de chave e passou o cadeado. Tenho para mim que essa atitude demonstra insegurança e instabilidade emocional, o que pouco tem a ver com a pauta de agora.

Chega à escola. Lígia era professora. O que mais podia ser com aqueles sapatos horrendos?

- Bom dia, classe. Espero que todos tenham feito o dever que deixei no quadro, na aula de quinta-feira.
E a aula vai acontecendo.

- Maria, formule uma frase utilizando o verbo “queimar”.

Maria sempre fora a engraçadinha da turma, e disse – rapidamente - como se a frase já estivesse pronta em seu pensamento: - A minha professora tem sapatos tão bonitos, que eu até os...


- TRIIIIIIIIIIM. Toca o sinal. Acabou a aula.

Foi no caminho de casa que Lígia conheceu João.
Lígia entrou cheia de pressa no metrô. Eu acho válido registrar que Lígia morava no Rio de Janeiro. Conclua daí, que ela estava em pé, esmagada no trem e com medo de ser assaltada. Isso não é dos cenários mais românticos. Mas enfim.

- Oi, você quer se sentar? – João cedera gentilmente o lugar para Ligia. Eu acho isso romântico. Ele podia estar chamando-a de idosa, noutro ponto de vista. Mas o importante é que Lígia aceitou, e no momento que sentou começou a preparar uma pergunta cretina, dessas que se fazem no metrô – especificamente, do Rio de Janeiro.

João estava parado em frente a ela. Eu arriscaria dizer que ele também planejava uma pergunta do mesmo nível.

Lígia foi mais rápida.

- você é da zona sul?
- sim, sou sim. E você?
- sou também!
- como é seu nome?
- Lígia. O seu é...
- João. Prazer.

Os dois deram rumo à prosa. Falaram sobre literatura, política, cinema...

- Belos sapatos. - diz João, interrompendo as reflexões de Lígia.

Lígia sentiu vergonha. Era a primeira vez que olhara alguém nos olhos, desde que prometera a si mesma não mais acreditar nas mentiras de amor que tantas e tantas vezes imaginou antes de dormir. As maçãs de seu rosto coraram quase que instantaneamente, e não saiu nada além de um tímido ‘obrigada’.

João a acompanhou até a porta de casa. Despediram-se, e só.

Os dias passaram. Lígia continuou a ouvir os gracejos de Maria na escola e continuou a pegar o metrô lotado e comum.

Adentrava ao prédio, quando aquela do 560 gritou: - Líííígia, um moço veio aqui lhe procurar.
- A mim? Como era seu nome?
- Ah, isso eu não perguntei. Também pudera. Não é possível que tenha dois amigos com sapatos tão feios quanto aqueles.

Lígia sabia quem era.

Naquele fim de noite, ela rompeu a promessa que fizera e adormeceu inventando mais algumas mentiras de amor.

domingo, 14 de outubro de 2007

Comprar pode não parecer divertido, mas é.

Há controvérsias.
Eu afirmo categoricamente: tratar de compras com uma pessoa do sexo frágil, hoje denominada ‘homem’, é insofrível.
Sem feminismos. Longe de mim, questionar qualquer superioridade por parte de qualquer sexo. Convenhamos, sabemos a complexidade das compras nossas de cada dia.

Véspera de Natal. Ele, tendendo à mais gritante das características masculinas, esquecera que no ano passado se auto-nomeara ‘responsável’ pelas compras da ceia e pelos presentes da família, do natal deste ano. A auto-nomeação foi decorrente de um conflito, desses clichês, sabe? O homem sempre reclama da árdua saga feminina nos shoppings e HIPERmercados da vida.

Enfim. Eu o lembrei um mês antes, com todos os detalhes que o instinto canceriano me permitiu. É evidente que o orgulho falou mais alto e ele não modificou uma palavra do discursinho.
- Sim, eu as farei. Você é muito complicada, Cecília.
Como previ, tendendo também à outra característica padrão masculina – essa, menos gritante –, Marcos deixou tudo para a última hora.
Cá estávamos nós. Véspera de Natal. Nada feito.

Por mais que o meu alter-ego desejasse que ele fracassasse e eu pudesse tripudiar sobre sua derrota, eu sabia que as coisas não podiam dar errado. Afinal, sob qualquer efeito, a culpa seria da mulherzinha da casa. Nesse caso – sem o diminutivo – eu, Cecília.

Pois bem. Eu fui com ele às compras. Hipermercado primeiro, claro.
Ele levou sua lista de compras, que por ironia – ou não – não funcionou.
-Meu bem! – ele grita -, olha só como está cheio! Vamos até a seção de frios, preciso catar algumas coisas. (ele provavelmente não citará nada. Ficará em dúvida, etc., e tal).
Fui guardar o lugar na fila. Não que eu tenha confiado na capacidade logística de Marcos, mas o fiz.
Marcos para lá e para cá. Eu, lendo na fila. Marcos passou não vinte, mas quarenta vezes pelos molhos de tomate, até perceber que precisava comprar umas latas. Eu, lendo na fila.
Vai aos congelados. Vai às cervejas. Vai catar pães-de-forma. Eu, lendo na Fila.
Vai à seção de cuecas. Vai às rações.
- A comida do Bóbe está acabando, hein, Ceci. Se não sou eu para lembrar...

Volta aos pães-de-forma, cata mais algumas coisas. Vai aqui e ali. Sai aos pães de forma, mais algumas vezes.
Terminei a leitura.
-Pronto amor, terminei.

Fui fazer as unhas e cabelos, enquanto Marcos ia atrás dos presentes. Ô dó.
Estava moído. E ali, não havia diferença alguma entre Marcos e Brás Cubas. Ambos não passavam de defuntos anti-heróis, mas essa citação não vem ao caso agora.

E chega a hora. A ceia se fez de pães-de-forma e cerveja.
A comida do Bobby teria grande utilidade àquela hora, não fosse a ditadura vegetariana reinante no meu lar.
Evidentemente, Marcos foi incapaz de pensar em tudo o que era necessário para uma ceia de natal, tampouco de pensar, em presentes apropriados.
Afinal, que tipo de filho dá lingerie com cinta-liga para a própria mãe?


Eu ganhei um anel bonito, um bilhete e uma flor. Mas tinha meu Marcos, isso era importante.
Nem lembrei da ceia, nem de nada.
E interrompi o silêncio incômodo, típico de um natal que não deu certo:

- amor, vamos pedir uma pizza?