quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A dona da padaria

“Ela é a dona da padaria”. A qualquer pessoa que perguntassem, ali no bairro, a resposta seria invariavelmente essa. Diriam que ela não vende fiado, também. Deve ser triste. Muitas pessoas lutam anos para ter um reconhecimento digno de toda sua batalha. Ela era conhecida como a dona da padaria - e nunca não se queixava disso. Talvez pelo fato de estar semi-viva ou semi-morta – na verdade, isso não faz a menor diferença pra pauta de agora. Os dias de Cândida eram todos iguais: acorda, fuma, trabalha, dorme. Tossia nos intervalos, aquela tosse seca, repetitiva, que dá desespero e a gente acha que a pessoa vai morrer. Sua jornada era mesmo sofrida. Acordava pontualmente às quatro da matina pra ir àquela padaria - a única de Santa Filomena, uma cidade minúscula e invisível do Piauí -, aturar o marasmo da própria existência e ainda intercalar isso com os malditos cigarros e as incômodas tosses. Quem pode ter uma vida mais ingrata? Seus dias eram intermináveis. Ela esperava a cada segundo. Ela só esperava. Madalena fingia companhia, e Cândida, fingia acreditar na companhia da filha. Madalena era prostituta na beira da estrada. Cândida sabia. Por vezes, sentiu inveja. A promiscuidade lhe parecia – e era, efetivamente – mais interessante do que a padaria maldito. Madalena pesava a quantidade de vida existente em Cândida e muito rápido, antes de você acabar de ler essa história, ou do cliente mais jovem de Madalena gozar e ir embora, ela concluiu que Cândida quase não existia. Não faria diferença se lhe tirassem o resquício miserável de vida que aparentemente lhe sobrara. Ela pensou em tudo. Nada muito metódico, e sem requintes de crueldade, evidentemente. Matar a mãe lhe parecia um favor - feito a ambas as partes -, não merecia ser apedrejada por isso. Talvez por algum de seus adultérios, noutros tempos. Talvez. Pois bem. Cândida amanheceu entupida de veneno. Não foi tragédia, nem ‘acontecimento’ foi. Dois ou três notaram sua ausência e teceram algum tipo de comentário cabível à situação. Os anos se passaram. Madalena passou o resto dos seus dias debruçada naquele mesmo balcão. Madalena agora era a dona da padaria. Sentiu na pele a espera de Cândida e, no seu caso, ninguém a notava o suficiente a ponto de arrancar-lhe a vida. Penso que a vida foi mais cruel com Madalena. Seus dias eram penosos. Ela sentiu o gosto adocicado da inveja, alimentada por algumas devassas que ironicamente se embebedavam no mesmo balcão de padaria, quiçá planejando qualquer homicídio desses sem culpa.

3 comentários:

Anônimo disse...

me lembrou, pelo nome, um conto machadiano ("Pai contra mãe"). o0

bem trabalhado o tema de inserção numa ordem social quase imutável.

se eu disser que é quase machadiano você vai se achar demais, então deixa pra lá ;)

beijo

Anônimo disse...

gostei bastante do seu blog, daniele.
passarei aqui de vez em quando...

ligia é o melhor

rsrs

bjks

DANIELLE NASSIF disse...

"Madalena era devassa. E Cândida bem sabia."


Eu reli agora e lembrei do dia em que eu estava escrevendo esse texto e pedi ao Victor que me ajudasse com uma palavra suja, associada à promiscuidade. Ele sugeriu "libertina" ou "devassa".
Eram mais legais as madrugadas.